segunda-feira, 3 de dezembro de 2012


Curto Diário Pop/ Pequeno Ensaio sobre o Desespero 


“Melhor que o silêncio, só João Gilberto.”


Frase de Caetano Veloso que eu apóio em todas as instâncias. Nesse momento ouço “Eu vim da Bahia”, numa versão com Stan Getz. Diferente da que me hipnotizou em uma volta de São José para São Paulo. Só ouvi a dita música por 2 horas, sem parar. No repeat, non-stop, entre hipnotizado e anestesiado. Foi aí que eu descobri. Melhor que o silêncio, só João. 

"George era meu Beatle preferido."


Ando numa fase Harrisoniana. Sem ouvir outro. O Paul está em Stand By, John em Pause. E eu, sigo no GH. 


Como ler Kafka....?


Eu que pergunto. Tentei ler O Processo uma série de vezes. Não passei do segundo terço. Não sou intelectual. Gosto de uns clássicos. Mas não entendi as viagens de Joseph K.  Alguns livros simplesmente não gostam de mim. Outro exemplo é Ecce Homo, do doidaço do Nietzsche. Nada em especial. Aliás, nem  são livros difíceis. Só não gostam de mim. Acontece com músicas, livros, pessoas e animais de estimação. Alguns não gostam de nós. 

A ida incerta dos que, talvez e jamais, saibam ir


Um título nonsense para, com nonchalance, melhorar o middle eight . Apenas para ilustrar o que não tem cor. Um brilho do que não pode, nem por instantes, apagar a próxima ideia, lépida ou difusa. Simplesmente para não explicar o que pode não ter carência aguda de entendimento. De repente... numa tentativa asséptica de ter uma escrita fluida como outrora buscadas em textos beat. Ou lívido, escolher palavras vívidas. 

A música americana.


Com esses programas  America's got talent, The Voice, American Idol,  fica mais uma vez provado que volume cria qualidade. Entre milhões de desafinados, encontramos centenas de grandes cantores. Em milhares de desafinados, apenas dezenas. Em centenas, no caso do Brasil, uns poucos. É a força da indústria. Eu, antes de morar lá, tinha críticas severas aos EUA e seu American Way of Life. Agora acho o máximo. Esse completo domínio da indústria do entretenimento é incrível. TVs gigantes, videogames, football, bud light e um Super Bowl foram suficientes para que eu curtisse. Quem diria, no começo da faculdade, eu queria morar em Cuba...

"Isn't it a pity
Now, isn't it a shame
How we break each other's hearts
And cause each other pain
How we take each other's love
Without thinking anymore
Forgetting to give back
Isn't it a pity"

Algum Inglês é necessário para entender a letra acima. George Harrison. Só para manter o ritmo e a cadência.


Tô me guardando para quando o Carnaval chegar ou Pequeno ensaio sobre o desespero.


Ele já estava pensando no Carnaval. Seu último havia sido péssimo. Tinha trabalhado. Servindo o Exército. Deu baixa em Outubro, já sonhando com o próximo Fevereiro; que, quando chegasse, a saudade já não mataria a gente. Animado como nunca, tranquilo e infalível como sempre. Mal podia esperar para subir, fervendo e frevando, as ladeiras de Olinda. Ver o mar de cima. E o oceano de pessoas ao seu redor. Jamais tinha passado um carnaval solteiro e contente.

Ensaiava o tempo todo. Ia pro Recife antigo todo domingo. Tocava cada vez melhor. E mais forte. A possibilidade de tocar em uma Nação lhe animava. Encontraria sua Risoflora? Se sim, que esperasse. Só esperava o Carnaval chegar. E que não fosse desengano.

Os dias passavam arrastados. Não sabia mais segurar a ansiedade. Voltou a beber. Tinha passado o ano todo no Exército sem tomar uma lata de cerveja. Mas isso não seria problema. Ninguém era alcoólatra aos 20 anos. Só porque bebia desde os 13. Não era possível. 

E não era mesmo. O tempo passou, o carnaval veio e foi, muitos vieram e se foram. Até que, aos 25 anos, nadando em direção ao pôr do sol, teve uma perna decepada por um tubarão. Aos 27 se jogou de um prédio, na Avenida Boa Viagem. E era um domingo azul. 







quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Bloqueio criativo

Tinha a tela branca em frente aos olhos. Não sabia o que escrever. Tinha estourado o prazo, "deadline", como o editor gostava de dizer com seu sotaque carioca arrastado (arraxxxtado?). Simplesmente o cursor não se movia. Tinha começado e terminado, várias vezes, algum escrito. Começou lembrando da infância. Rapidamente deletou. Falou de rotinas de todos nós; apagou, novamente, com certa impaciência. Chegou a começar um poema:

"Quero cantar solto a vida em seu momento
Quero viver junto tocando, solo, um instrumento..."

Parou. Ficou brega. Pra escrever poesia, o sujeito tem que estar muito apaixonado ou muito deprimido, concluiu. Tentou contar uma história de terror...

"Passos a seguiam lentamente. Ela, no corredor tétrico e acarpetado até o teto, ouvia, a cada passo, uma batida cálida do seu coração. O sangue fervendo, a espinha gelada e o suor, descendo vagarosamente, cético. Sentiu-se lépida, tomou de súbito o corredor à direita..."

Percebeu que tinha escrito proparoxítonas demais. Só o Chico Buarque pode usá-las assim, ao seu bel prazer. Pensou em ter uma síncope (olha ela aí de novo, hoje é dia). Pensou em ligar pro editor e ter uma conversa franca, que ensaiava há anos:

-Olha, seu carioca de merda, EU sou o artista e estou sem inspiração. Você é um desgraçado. Por que não se preocupa se a menstruação da sua filha está atrasada....

Sentiu-se contente com a própria ideia. Mas pensou que não seria de bom tom. Deveria pensar em alguma coisa pra xingar a mãe daquele idiota. Porém, com a pensão do filho mais novo atrasada, voltou a concentrar-se no que escrever.

Queria uma história de época. De repente um policial em plena Grécia. Entre deusas mitológicas e gente de sandalinha amarrada no pé e vestidinho branco. Não...provavelmente confundiriam com a Parada Gay de São Paulo. Ou um show da Lady Gaga...."É isso!", num estalo. " Vou escrever a biografia de algum artista da nova geração... pra quem eu ligo? Hummm....". Não, não há ninguém absolutamente próximo de ser interessante no mundo em que vivemos. E mesmo porque, a internet devassa a vida de todo mundo. E já se sabe que Luan Santana é gay, Gustavo Lima é pegador e Nicole Bahls, puta. Além do mais, são todos uns imbecis.

Tamborilando com os dedos no teclado, empolgou-se com o sonzinho que produzia. Uma coisa leva a outra, lembrou-se da viagem à Bahia, suas batucadas e santos profanos. Isso! Iria escrever uma história na Bahia, com bastante sensualidade, peles morenas, aristocratas e candomblé... Não, isso ele lia, quase todo dia, nos livros de Jorge Amado.

Realmente começou a preocupar-se. Depois de anos sem ter nenhum problema com ideias. Com histórias mirabolantes, inúmeros desfechos, tramas coerentes, leves ou não, mas com finais fantástico. Foi considerado " O grande talento da nova geração", pelo Estadão. "De leitura fácil e complexa, subverte a ordem e faz o leitor pensar, acompanhe no gráfico", pela Folha. Recebeu elogios rasgados por todos os jornais do Brasil. Era considerado, bem quisto, admirado. Comeu umas 4 ou 5 gatas depois de aparecer no Fantástico.  Era o fim. Já não conseguia pensar em mais nada, nem criar nada. Pensões atrasadas, dinheiro sem entrar e nunca teve talento pra outra coisa; além da eloquência, rapidez no pensamento, uma certa tendência a picaretagem, ser safado e não ter nenhum tipo de ética...

Na manhã seguinte, se inscreveu num partido qualquer, já sonhando com a candidatura nas próximas eleições...








terça-feira, 6 de novembro de 2012

Duas coisas que eu adoro e uma que eu odeio


Inspirado na tirinha do Angeli, "Duas coisas que eu odeio e uma que adoro", resolvi escrever um textinho um pouco diferente. Cada parágrafo vou botar duas coisas que eu adoro e uma que eu odeio. Desafio aos meus parcos leitores (sim, vocês da Rússia também), a fazer um mesmo. É um excelente exercício sobre gostos. E o que é de gosto, regalos da vida, já diria minha avó.

Eu adoro ligar a rádio e ouvir uma vinheta e as palavras: "Uma hora só de música, sem intervalos". Garantia de uma hora sem a pior publicidade do mundo, os anúncios de rádio. Adoro também, picolé Chicabon. Não adianta, não gosto dos frescos, com sabores aristocráticos como "macadâmia", ou de marcas famosas. Gosto do Chicabon. E eu odeio sair do banho e notar que não tem tapetinho. Pra desespero da minha mulher, eu seco o pé no tapetinho. Quando eu noto que não tem tapetinho, quase estraga meu banho. Pior que isso é entrar no banho todo empolgado e notar que a toalha ficou fora, três cômodos de distância.

Eu adoro ventilador. Prosaico, mas é vero! Eu não gosto da secura do ar condicionado. Gosto do barulho, do sacudir e da refrescância fugaz do velho ventilador, daqueles que se movem, salvam sua vida por quatro segundos, depois viram o rosto, te ignorando e ventilando os quadros e papéis ao redor para, alegremente, retornar e te refrescar de novo... Eu adoro tardes de outono em países do norte. No Brasil não temos outono. Nem primavera. O mais gostoso dos países do Hemisfério Norte, é ver o verão, lentamente, indo embora. As folhas se soltando das árvores como que dizendo "tão cedo... tão cedo...". E o colorido de tons vermelho que cobre as pradarias até "la puta nieve" chegar. E odeio o Faustão. Não suporto a cara, a voz, principalmente depois que ele emagreceu. Não suporto seus relógios ostensivos, suas camisas ridículas e suas intervenções babacas nas "Videocassetadas" (que até gosto, mas sem os efeitinhos sonoros).

Eu adoro Beto Guedes. É desafinado, meio fora de época, mas minha irmã me ensinou a gostar e eu adoro. Quando ouço o tamborzinho de "Lumiar", me sinto mais conectado com a mãe-terra. E um pouco mais hippie. Adoro, também, trocar pneu; não posso ver o pneu mais baixo que me animo: "Será que está furado e vou ter que trocar?" A minha parte favorita é pisar na chave de roda, pra apertar bem. Bater a mão, ligar o carro e sair, ouvindo "uma hora só de música"! Eu odeio livros da modinha: "Cinquenta Tons de Cinza", Dan Brown, "O empinador do caralho da Pipa" e essas porcarias todas. Se todo mundo gosta, comenta, tem continuações, eu tenho uma certeza: é uma merda.

Eu adoro cheiro de chuva. Sempre penso na música "Cheiro de relva, traz do campo a brisa mansa..." Mas só a versão do Dino Franco. A Paula Fernandes é muito bonitinha mas tem menos talento que um sapo. Adoro também cheiro de alho fritando. Pode até ser que depois a comida não faça jus, mas adoro o cheirinho do alho refogando, seja pra qualquer tipo de prato. Odeio, bastante, cheiro de jaca. E de panetone. E de mel. Três coisas que eu não como nem a pedrada. Principalmente quando dizem que mel "faz bem" e que é um antibiótico natural. Não, eu não acredito em medicina caseira. Antibiótico é penicilina, terramicina e todos esses "micinas" da vida. Não, agrião amassado no alho poró, fervido com gengibre e folhas de repolho não cura absolutamente nada.

Eu adoro viajar. Adoro a ideia, a ida, a volta, a estada. Mesmo que o lugar seja uma bosta, que tenha trânsito na ida e na volta, que chova o maldito feriado inteiro. Planejo, paquero, sonho com a viagem por meses que a antecedem. Mesmo quando é pra 120 km de distância. As viagens e suas pastas pela metade, sabonetes novos e escovinhas de dentes de viagens que nunca funcionam direito, por serem macias e não se fixarem bem na base que as protege depois da escovação. Mesmo assim, adoro viajar. Adoro, também, estradas no fim do dia. Quando sol começa a se pôr, eu penso no Jack Kerouac e no "On the road". Me sinto parte do grande espetáculo da vida. Mesmo que seja só uma estradinha pra chegar mais rápido em casa.  E odeio gente que põe crianças fodidas no facebook, ou animais maltratados, ou ainda exalam sua fé e falam da importância de Jeová, Genésio, Jah, quem seja, na vida deles. Aliás, odeio gente que não sabe usar mídias sociais.

Isso, pra listar alguma das coisas que eu adoro e odeio. "Please allow me to introduce myself  I'm a man of wealth and taste", principalmente "taste". Quem me conhece sabe como sou. Podem até dizer que eu odeio mais coisas do que adoro. Mas não é verdade. É que as coisas que eu adoro, guardo mais pra mim. E as que eu odeio, meto o pau e falo à beça; quem sabe é pra expurgar de uma vez, evitar que aconteçam de novo? E não ter que ouvir, nunca mais, que a Ivete Sangalo é uma grande cantora....


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

As ladeiras e as cinzas


"Recomeçando das cinzas. Eu faço versos tão claros. Projeto sete desejos. Na fumaça do cigarro..."

Ele vinha descendo as ladeiras de pedra de Olinda. Ouvindo Alceu Valença, pensando no desmantelo da tarde e no calor que incendiava sua alma. Enquanto andava pelas ruas estreitas, vendo o mar e suando em bicas, pensava no livro que estava lendo sobre a Revolução Cubana. Tinha certeza que se fosse aplicado no Brasil não daria certo em lugar algum. Só em Pernambuco. Só aqui. Tinha decidido fazer essa viagem, mochilando e de ônibus.  E sozinho. Com seu Iphone, suas músicas, pensamentos e lembranças. E encantado com cada esquina da linda vila.

"Eu quero Tchu. Eu quero Tcha. Eu quero Tchu, Tcha Tcha..."

Ela estava de saco cheio dessa excursão. Queria ter ido para Porto Seguro. Mas os pais insistiram em vir para Recife. Achava até vista bonita lá de cima da Igreja da Sé. Mas sentia falta do namorado. E da turma toda que tinha ido pra Bahia. Pelo menos tinha seu Iphone e ouvia o que queria. Nem escutava o papo do guia, contando que a cidade era uma das mais antigas do Brasil, patrimônio histórico da humanidade. Só escutava os "tchus e tchas" e sentia o calor queimando as têmporas. Embora "têmpora" fosse uma palavra que não conhecia....


"Recomeçando das cinzas, vou recompondo a paisagem/ Lembro um flamboyant vermelho/ No desmantelo da tarde..."

Subia mais uma vez a Ladeira da Misericórdia. Sonhava com uma vida diferente. Longe daquela cidade fria e multitudinária que é São Paulo. Já tinha 25 anos, trabalhava na Bolsa desde os 23. E, depois de tomar um chifre da namorada com o chefe dela, sentia que era o fim do seu período em Sampa. Queria viver mais arte, respirar mais música, criar mais. Poderia bem administrar seus fundos de ações de um computador, sentado na varanda de um desses casarões...

"Tchu, tcha, tcha, tchu, tcha tcha!"

Pensava: "Já tenho 18 anos, não preciso mais viajar com meus pais. Já sei muito bem o que eu quero e quando quero. Não tenho motivos pra vir pra cá...." Acabou a bateria do seu Ipod. Continuou com o fone para que seus pais não a perturbassem. Mas resolveu prestar atenção na cidade. E, mesmo não sendo do seu gosto, achou lindo aquelas casinhas coloniais, uma coladinha na outra.... E, finalmente, resolveu olhar, esgueirando-se pelas esquinas, o mar. Aquela beleza verde esmeralda, do alto de uma ladeira lhe emocionou a ponto de dar um nó na garganta.  Não sabia se era o calor, mas alguma coisa tocou seu coração.... O sol começava a se pôr e já voltariam para a pousada....

"Lembro um flamboyant vermelho/No desmantelo da tarde/A mala azul arrumada/Que projetava a viagem..."

Ele decidiu voltar para a pousada, pensava em comer algo, com cada vez mais certeza do que queria. Com vontade de não mais voltar pra São Paulo. Querendo se perder em ladeiras, organizar um bloco de carnaval, aprender Maracatu... Lembrou que hoje era noite de Lua Azul e resolveu acelerar para a pousada, só tomar um banho rápido, se trocar e descer para o Varadouro e ver a lua surgir magnífica do mar de Olinda....

Quando deram um esbarrão. Ela olhando pro Ipod e balançando para ver se voltava a funcionar. Ele pronto para desligar:
-Desculpe, mocinha!
"Mocinha?" Pensou ela
- Falou, tiozão!Tudo bem, deixa pelo menos eu ouvir o que tem no seu Ipod!
-É Alceu Valença, conhece?
-Deixa eu ouvir...
"Recomeçando das cinzas/Eu faço versos tão claros/Projeto sete desejos/Na fumaça do cigarro..."

E ela, estranhamente emocionada, ouvia com os olhos brilhando e um meio sorriso lindo, lindo. Já estava meio tocada com a cidade e agora essa música...

"Recomeçando das cinzas vou renascendo pra ela/ E agora penso na réstia/ daquela luz amarela"

Terminou a música. Começaram a conversar. Ele, encantado com o meio sorriso, perguntou se ela queria ver a lua nascer no Varadouro, que eram só uns 5 minutos descendo. Ela topou. Ela contou que nunca tinha ouvido essa música, nem nada desse Alceu. Ele disse que depois de ver a lua iria mostrar pra ela a casa do cara, que passava o ano no Rio e o carnaval em Olinda. E conversaram, conversaram e abriram o peito, deixaram o coração falar. Tão diferentes, tão parecidos. E se apaixonaram. E ouviam, cada um com um fone, a música que seria aquela canção especial que todo o casal que se preza tem.

"Mãe, Pai, eu não vou voltar pra São Paulo!"
"Chefe, eu peço demissão. Pago a multa e tudo mais, mas não vou voltar pra São Paulo"

Resolvidos. Decidiram alugar um casarão ali nos "Quatro Cantos" e decidiram que lá ficariam. Os pais dela, a princípio, protestaram. Mas viram que ele era um bom rapaz. E que eles mesmos tinham uma história parecida. O chefe dele nem ligou. Sabia que ele já não tinha cabeça para trabalhar há uns meses. E topou até fazer um acordo. E eles ficaram em Olinda...

"E agora penso que a estrada da vida tem ida e volta/ Ninguém foge do destino, esse trem que nos transporta"...

Organizaram a vida. Mobiliaram o casarão com móveis usados. Apaixonados, vivam apenas o dia. E resolveram montar um ateliê na entrada da casa. Rapidamente os vizinhos, enxeridos, aprovaram o casalzinho. E pisaram em nuvens naqueles três meses iniciais, onde tudo é lindo, tudo é verdade, os braços e abraços não se desgrudam. Até terem a primeira briga. Até perceberem que eram muito diferentes. Até ele perceber que ela era uma pós-adolescente fútil. Até ela perceber que ele era um velho aos 25 anos. Até perceberem que tinha sido tudo uma loucura. Até ele levá-la para a estação de ônibus. E na despedida ela chorar lágrimas vazias e ele sorrir aliviado. E nunca mais se viram. Nunca mais se falaram. Nunca mais se apaixonaram.

E a Lua seguia brilhando azulada e linda no verde esmeralda da beira-mar de Olinda...

"Ninguém foge do destino, esse trem que nos transporta..."



segunda-feira, 27 de agosto de 2012

20 mg de felicidade...


Foi assim que decidiu, conversando com um passarinho verde que acabava de fugir da gaiola. Ramona queria bater asas. Cansada desse mundo de iniquidades e injustiças, de mensalões e escândalos, violência e clássicos horrorosos como o último Flamengo e Botafogo.  Queria ir para lá do horizonte, conhecer a face oculta da  Lua. Decidiu não tomar nem os antidepressivos nem o remédio para aquilo que o doutor chamava de "esquizofrenia moderada". E sentiu-se livre, livre!!

Saiu para a rua. Subiu no primeiro ônibus. Não deu "tchau", para as flores. Não se despediu de Ernesto e Nazaré, seus gatos. Nem afagou Ladislau, seu poodle irritante. Simplesmente entrou no primeiro ônibus e decidiu viver a vida... Foi parar em Olinda. Subiu ladeiras. Fez gestos obscenos para as câmeras de vigilância. E ria, ria muito, ria alto! Feliz. Observou, lá do alto da Sé, a vista mais bonita do mundo. Sentiu o cheiro do mar. E das tapiocas que começavam a ser feitas... Descalça, sentiu também o areia grossa e úmida na beira de uma boca de lobo. E correu, desceu ladeiras. Sentia-se sem freios e não percebia os olhares curiosos. E alguns preconceituosos.

Tinha separado um bom dinheiro. E deixou enfiado naquele bolsinho pequeno da calça jeans. E também na calcinha. Não queria ser roubada. Podiam achar que era louca. Mas ninguém poderia pensar que fosse burra. Decidiu ir até a rodoviária da cidade e pegar um outro ônibus. Queria ir pro norte. Sempre sonhou em conhecer São Luís. Pagou a passagem, de ida, e foi. Cantando, sorrindo, feliz. Imitando Alcione, subiu no Expresso Guanabara: "Minha estranha loucura, é tentar te entender e não ser entendida..." Só sabia a letra até ali.

Não notava que os outros passageiros olhavam feio para ela. Dizia "olá" e "bom dia" para todos os mandacarus do caminho. O coração batia forte. Em Serra Talhada, pôs o corpo todo pra fora do janela e gritava: "Olá, Serra lindaaaa! Olá!!! Olá dia!!" Não percebeu que o motorista olhava pra trás, além de desconfiado, irritado. Os passageiros já se conversavam. Pensavam em tomar alguma atitude. Porém, Ramona nem entendia mais nada! Dava voz aos seus bichos interiores e sentia-se inebriada de tanta felicidade e alegria. Tinha saído de casa há quase 16 horas e, cansada, dormiu. Noite de lindos sonhos. Nele, o psiquiatra dizia: "Viu? É só ser feliz que passa". E, para alegria dos passageiros, dormiu até Teresina.

Acordou eufórica! Sentia-se curada! Já fazia 24 horas que não tomava seus remédios. Foi a todos os passageiros e dizia, um a um: "Essa é a cura, amigo, a felicidade". Foi até a frente do ônibus. Pediu para o motorista parar, pois queria pisar no chão do Piauí. O motorista, já sem nenhuma paciência, disse para ela ter calma, pois a parada, de 2 horas, era logo ali na frente. E então percebeu, que além de louca, essa galega era bem jeitosinha....

E começou a pensar em maneiras de conversar com essa doida. Fazia 4 anos que a mulher tinha morrido. Desde então, nada. Outra cidade, outro RG, outro nome...Não, a culpa não tinha sido dele. Foi a esposa que pediu para que apertasse mais. Não queria aquela tragédia. Mas também não iria em "cana". E teve que fugir... e viveu nesse limbo desde então. Mas essa louca, que cantava sem parar, não iria ligar de dar um beijinho, quem sabe mais... A parada era no próximo posto.

Ramona foi para o fundo do ônibus, no banheiro. Não aguentou esperar mais. Quando saiu, estavam todos do lado de fora, esticando as pernas. Nem percebeu o olhar maníaco do motorista. Mal sentiu a primeira pancada...Ficou zonza, língua na sua garganta. Tentou lutar, mas sentiu outra pancada e outra mais...Em pouco tempo já não sentia mais nada... O ônibus tocou em frente sem ela. E sem o motorista, que terminou seu turno e, discretamente, a levou para um matagal atrás do posto. Ramona já não sorria, já não se achava curada, já não era feliz. Quando tomou a primeira facada no pescoço nem gritou. Sentindo o sangue borbulhante e quente na garganta, sonhou com Ladislau, o poodle irritante, e com seus gatos Ernesto e Nazaré e sentiu saudades de cada um dos seus remédios, os seus 20mg de felicidade...


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A metafísica e a eleição.


Perdia pedaços conforme andava. Quando não deixava o rim, era sempre o fígado ou o pâncreas. O corpo, dissolvia como um sonrisal.... E tinha que voltar, a cada passo do caminho. Buscando seus órgãos e vísceras. Para que chegasse completo à estação. O trem já tinha chegado e esperava para sair. Com uma sacola, saia perguntando: "Você viu um coração pulando por aqui? Mais ou menos do tamanho do meu punho, vermelho sangue, saltitando?" Não, não tinham visto.

Com tudo já na bolsa, lhe faltava o coração. O trem apitava. Pronto para sair. E ele não podia ir sem aquele que lhe enche o lado esquerdo do peito. Corria pela estação. Nada de encontrar seu órgão favorito. Bem que a vó dizia: Não podemos ir a canto algum sem o nosso coração. Ele, preparado para uma longa viagem em direção à capital, pensava nas palavras da avó. Viva, mas há muito enterrada. Não havia mais tempo. Tinha que embarcar. Fechou o peito, pregou o esterno e subiu no vagão. A viagem tinha de continuar.

"Já lhe dei meu corpo, minha alegria
 Já estanquei meu sangue, quando fervia
 Olha a voz que me resta
 Olha a veia que salta
 Olha a gota que falta pro desfecho da festa
 Por favor
 Deixa em paz meu coração
 Que ele é um pote até aqui de mágoa
 E qualquer desatenção, faça não 
 Pode ser a gota d'água..."

Ouvia Chico no vagão-restaurante e começava a perceber que não tinha tanta saudade assim daquele músculo ingrato que insistia em bater descompassado. Não poderia era ter perdido o fígado. Esse sim ficou feliz de ter recuperado. Pediu um gim-tônica duplo e foi olhar a paisagem. Quase não notava mais ninguém ao seu lado. Viu, pela janela, a pobreza  daquele canto esquecido do Estado. Crianças corriam junto ao trem, tentando vender balas para comprar cola para cheirar. Não se importou. Pediu mais um drinque. Ficou feliz de ter intacta também a língua e todas suas papilas gustativas... Mas sabia que se continuasse naquele ritmo, em breve, sentiria um certo arrependimento de não ter deixado o estômago pra trás....

Sentou-se ao lado de uma família. Ouvia suas histórias. Que drama!  Iriam visitar um parente em estado terminal. Um câncer já espalhado. E comentavam que a tia contava os gritos de dor do marido. Aquele tio que sempre cuidou, ajudou na escola, pagou os estudos, ensinou a torcer pro time certo. E choravam. Ah, como choravam. Levantou-se, cansado de ouvir as fungadas, e foi buscar outro drinque. Já tinha bebido bastante água, sentiu-se feliz por ter voltado para buscar o rim. E foi para outro vagão. 

Dessa vez, pediu licença e se posicionou em frente de uma senhora com seu cachorro. Já bem idosa, o cão já bem velhinho. Achou que ali teria paz. A senhora, claro, puxou conversa. Mas falava mais com aquele animalzinho sarnento. Disse que seria a última viagem deles. Que seus tempos haviam acabado. E que o "Bolinha" ia ser sacrificado. Mas que, lá  no interior, de onde vinha o trem, não poderiam acabar com o sofrimento do "Bolinha" de forma digna. Ele, já cansado de tanta história, esperou o primeiro túnel. Arremessou o cachorro pela janela. Levantou-se sorrindo e ouvindo os gritos desesperados da senhora. Aliviado e sem sentir aperto algum no peito. 

Voltou para o vagão do bar. E lá ficou até o fim da viagem. Finalmente! Pegou seu título e foi direto para a seção eleitoral. Enfrentou meia hora de fila. Indiferente aos apelos (sempre há uma boca de urna), votou no candidato que representava o Governo do Estado. Sentia-se anestesiado. Voltou à Estação para pegar o trem de volta para o interior, quase sem entender nada, com a cabeça muito mais leve que o normal. E, com muito esforço, percebeu que antes de apertar o botão "confirma", tinha também perdido uma boa parte do cérebro. Agora, além do coração, tinha perdido quase toda sua massa cinzenta. Usou ainda os poucos neurônios que sobraram, tentou ligar para o Palácio do Governo, queria saber como se filiar ao partido do Governador...Deu ocupado. Começou a discar de novo 0...11... 2193...8282...



domingo, 19 de agosto de 2012

A beleza da dúvida

A beleza da dúvida- Inspirado no texto de Xico Sá 

Pois é.... Três impedimentos. E seguidos. O mundo Corintiano bradou: Injustiça!!! O que eu vi: Beleza!
Finalmente, algum homem da bandeira errou contra o Campeão da Libertadores...  Protegidos que são pelos "apitadores".... O futebol vive de momentos como esse. Erros clamorosos. Mas tão absolutamente claros, que se tornam um poema. Acabo de ler o blog do Xico Sá (http://xicosa.blogfolha.uol.com.br), e fiquei cá com meus botões pensando o que aconteceu com a dúvida. Onde foi parar, não só no futebol, a dúvida?

Vivemos em tempos estranhos. Onde todos temos certeza. E quando não as temos, buscamos num rápido toque num Iphone qualquer, a Santa Wikipedia para sanar todas as questões. Que mundo tolo é esse? Em outros tempos, caso discutíssemos, por exemplo, o ano que Cartola nasceu, alguns teriam uma ideia. Poucos teriam quase certeza. E pelo menos dois teriam convicção. E era o início da discussão; a mesa de bar ficava muito mais animada. Um batia no peito e com toda certeza desse mundo e de outros mais: "1909, não há menor sombra de dúvida. E digo mais foi lá pro finzinho de outubro". O outro, rindo ironicamente, afirmaria: " 11 de outubro de 1907 e não se fala mais nisso". Pesquisas seriam feitas em outras mesas, garçons seriam consultados. E até ligações para aquela tia fã de samba e quase centenária, seriam feitas. E torcidas organizadas, de um lado e de outro, espreitariam ao pé do Orelhão (lembra dele?), para testemunhar o final da discussão. E se tia Marinalva já estivesse dormindo, ficaria para a Barsa, quando chegasse em casa. Com aquele seu cheiro característico, no alto da estante...

Hoje, se colocarmos uma câmera no teto de um bar e tirarmos uma foto panorâmica em direção às mesas, veremos nucas cabeludinhas olhando para seus respectivos celulares. Muito próximos dos seus umbigos. E as discussões começam e se encerram, rapidamente, com certezas absolutas. E com todas as fontes possíveis. As mesas de bar estão muito mais silenciosas. Discussões acaloradas sobre dúvidas nascidas no calor das talagadas, com torcidas formadas e defendendo cada lado apaixonadamente, já não mais existem. Aquele amigo mais sábio, conhecedor de quase tudo, foi substituído sem misericórdia pelo "seu" Google. Sem choro nem vela, os tempos da dúvida e dos entreveros, causados pela vontade de dominar o saber, se acabaram em quase todos os campos da vida...

Não podemos nem nos perder mais.... Não temos o direito de errar o caminho!!! Quando não estamos seguros da rota e, em dúvida, dobramos naquela direita lá, ouvimos: "Recalculando, ande 150 metros e dobre à esquerda", com diversos tipos de vozes a escolher, o GPS é a verdade e o caminho. E até pra quem é mais careta, há o Google Maps. Imprime a direção, passo a passo, um pequeno mapinha e o caminho está traçado. Nada de pedir informação e ser mandado pro outro lado da cidade. Nade de parar no posto, rasgar o mapa tentando desdobrar (e nunca mais conseguir dobrar do jeito que estava). Ou procurar aquele Guia Quatro Rodas 1984, já amarelado, para tentar saber se a "Pousada do Barão" era  mesmo o melhor hotel de São Pedro da Coroa Espinhosa. Mais uma vez, ao alcance do botão, temos avaliações precisas, opiniões de quem já esteve lá e  fazemos o "check in", cheios de certeza.

Por isso, saúdo o futebol e seus erros. Posso estar enganado, mas a tecnologia pode ser utilizada para sanar dúvidas em quase todos esportes. Mas não no nosso querido futebol. Nem um replayzinho no estádio é permitido. Quando estamos num campo e um lance no qual um erro magistral como o do bandeirinha desse último Santos e Corinthians acontece, a discórdia é semeada. Discussões entre torcedores acontecem na arquibancada, mutias vezes dentro da mesma torcida! No gramado, alguns jogadores consultam o goleiro, outros vão xingar ou aplaudir o bandeirinha. Mas a dúvida paira. Pelo menos até o intervalo ou até o fim do jogo, quando consultam o infeliz do tira-teima. E aí, a bela dúvida se encolhe e vira, tristemente, uma certeza. Peço à Fifa que nunca se renda à tecnologia dentro dos gramados. Para que não terminemos enterrando de vez a dúvida. E para que não vivamos, também no futebol, a neurose da eterna certeza.


sábado, 18 de agosto de 2012

Acid Jazz

Ilustração by Olivier Bonhomme

O que mais impressionava, eram as palmeiras e o jazz...
Sem notar que tudo mais girava, o Cuba-Libre fazia efeito
E sem poder mais dançar, mexia sonolento os pés
E logo morto jazia, sem o que era seu de direito

O calor insuportável lembrava sua infância no Oeste Paulista... Mas não. Nada seria parecido com o que sentia naquela ilha. Aquela gente, aquele som. Aquele sopro severo, a voz rouca e forte do cantor, somada às talagadas da sétima Cuba-Libre deram-lhe coragem suficiente: Nada de hotel. Ia explorar a cidade. Esperou a banda terminar aquela improvisação. Já não conseguia nem aplaudir. Movimentou-se com dificuldade. Mas, resoluto, tomou um gole de alguma bebida da mesa do lado. Nem ouviu os protestos. Já estava do lado de fora.

A noite não refrescava nada. Entretanto, o suor escorrendo, aparentemente, não parecia arrancar o álcool do seu corpo. Mas, depois de 15 minutos andando, deixara de cambalear. Quando se está num lugar diferente, tudo é surpreendente. Tudo parece calmo. Tudo está por descobrir. E aquela ruela era igual a todas as vielas do mundo. Também não era novo o ritual de encostar na esquina e vomitar. E seguia andando, a esmo, navegando livre numa onda de calor que beirava o ridículo:

- Ninguém merece um calor desses!!!! Ninguém!!

Conversava com o infinito. Que também não queria responder. Mais horas foram se passando. E calmamente deixava de sentir os efeitos dopantes da bebedeira. Mas já estava completamente perdido. Quando ouviu alguém sussurrar seu nome. Olhou, assustado: "Quem caralhos me conhece aqui nessa porra?" Nenhuma resposta. Começou a perceber que a rua vazia, quase sem casas, terminava numa encruzilhada. E aquele medo, comum a quem está sozinho, bateu.  E ouviu seu nome de novo dessa vez mais alto: " Raul!"

Tentava controlar o medo. Mas um calafrio percorreu toda sua alma. Será que a sua hora tinha chegado? Ou simplesmente perdera totalmente a lucidez? Começou a andar mais rápido.

"Raul.... Raul.... Raul...."

Ouviu de novo. O som era claro e a voz era grave e rouca. Começou a correr. Só não sabia onde ia. Mas não deixava de correr.  Cada passo mais rápido, mais a voz perseguia:

" Raul... Raul...Raul..."

Desespero. Começou a querer gritar. Mas a voz não saía.... E começou a pensar absurdos enquanto corria: " É a vingança, sabia que esse dia iria chegar".... E aquele chamado o perseguia. Para onde quer que fosse... Corria em diagonais, pensava em bater em alguma casa, mas o que diria? Mal sabia falar a língua desse povo....e ouvia:

" Raul....Raul....Raul...."

Cada vez mais perto, quase sussurrando ao seu ouvido.

"Raul, Raul...."

Quando avistou o bar. De longe podia ver os mesmos músicos ainda tocando. O bar. A salvação. Já não aguentava mais correr. Chegou, tropeçando no balcão do bar... Quase aos gritos, interrompendo a banda de Acid Jazz  disse, desesperado, caprichando no sotaque "portunhol":

-Garçon! Por...favor, mas una Cuba- Libre, señor.

E metendo a mão no bolso, olhou para o frasco de Rivotril e pensou: "Amanhã vou tomar um só...."

O sol já começava a apontar no horizonte e o grupo de Jazz tocava cada vez mais alto, saudando o que, mal sabia ele, seria sua última alvorada....








State of Soul...


Tarde cedo, um domingão

De repente, num arroubo de energia

Na certeira ambição

Levanta do sofá na fantasia

Esgueira-se entre mesa e fogão

Abre, com receio, a geladeira vazia

Encontra aquela lata esquecida atrás do feijão

Puxa e trisca a unha, estalada sadia

Desce o líquido loiro, amorenando o coração.


Navegando no hiperespaço inter-craniano latente, sente cada molécula da gelada...
Facilitando as sinapses criativas. Massageando as mais tensas, conversando com os neurônios que precisam de mais atenção e que estão entrando pela esquerda do palco pra tocar “All my loving” com os que moram lá no cerebelo.

Os azuis olhos enxergam ao redor. À frente, uma tela. À direita, uma bandeira do Santos e uma flâmula do Real Madrid e um violão. À esquerda, mesas, uma miniatura da torre Eiffel em vidro. Cenário posto. Definidamente mutável. Agnosticamente religioso, dogmaticamente plural. Todo o mundo janela afora. Todo o universo olhos a dentro. Pássaros, carros, Gênesis. Composto cenário sonoro. 

Levantando a passos largos e lentos. Encaminhando para a porta. Desce um lance de escadas de carpete. Abre as portas. Árvores, como que pegas no pulo, começam a se cobrir. Já não há sinal de neve. Tranqüilidade e verde por dois quarteirões. Avenida movimentada. Zebra estirada garante travessia sem sustos e sem sinais, vermelhos ou verdes. Nem sorrateiramente amarelos. Só zebra. Catedral de cânticos, culpas e mirra à direita. Dois quarteirões de prédios antigos e árvores. Canivete em mãos, escreve no tronco: "Não leia essa merda". Nada a dizer. Segue. Caminhando por la calle, liga o som. Entra na loja. Compra mais loiras. Segue amaciando o cérebro. Bob Dylan toca alto. 

Sobe no táxi. Viaja em silêncio. Não informa onde vai. Salta de repente, no sinal, deixa vinte reais no banco da frente. Entra no teatro abandonado. Cria um monólogo. Sai aplaudido pelo público imaginário e alguns sem-teto. Volta ao lar correndo. Sobe as escadas acarpetadas. Passa pela geladeira. Encontra o feijão que escondia a cerveja. Come, gelado, com mostarda. Liga a tevê e para de pensar...






Recife...ah, Recife....







Eu vou morar em Recife, Olinda será meu quintal,
Ladeiras, areias e troças
Seguir ao norte e visitar Lia,
Tomar cerveja nas palhoças
Fazer do sol eterno, moradia.
Ritmada melodia, baque virado ou rural…

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Sol de Inverno



Ela sentiu frio. Fazia 23 graus em Recife. E ela sentiu frio. Disse que a “friagem” vinha desde a espinha e lhe fazia tremer. Eu ri. Frio com 23 graus? Ela sorriu de volta e pediu um abraço. Assim, com o braço em volta dos seus ombros, seguimos andando, à beira do Capibaribe, em direção ao Cinema São Luiz. Falou da reforma do prédio e das salas do Cinema com os olhos brilhando. Era apaixonada por essa cidade. Tinha nascido aqui. Ficou anos fora e voltava, depois de quase uma década. Conheceu o mundo, morou na Europa. Esteve na Índia. Pescou no Alasca, banhou-se no Ganges. Subiu o Himalaia e os Andes. Morou no norte do Canadá. E eu pensava: Por que raios voltou? A timidez e a saudade não me deixavam perguntar. E ela falava. Contava das belezas que viu pelo mundo. Do frio do norte, do sol da Índia. Do vento Andino. Eu, sem nunca ter ido mais longe que a Paraíba (ok, já estive em Natal), ficava abestalhado, só sonhando com o que ela me contava.

Cruzamos a ponte. Ela cantarolou Lenine. “Caminhar pelas águas nesse momento”. Disse que nunca deixou de ouvir música daqui. Mas tinha conhecido o Rock Alternativo, Trance, música folclórica de todos os países que esteve. Dizia, sem modéstia nem arrogância: Minha vida foi uma “National Geographic” em movimento. E eu, embasbacado, me perdia no infinito dos seus olhos verdes. E ouvia suas histórias. E lembrava da minha viagem pra Pedra do Ingá na Paraíba, onde vi as inscrições mágicas. E lembrava que minha vida era, no máximo, um “Guia Quatro Rodas”, e só a Edição Nordeste. E ainda da lombra e do enjoo da volta desse passeio, depois de tomar um litro de Pitú. Tinha 15 anos e era quando Chico Science começava a fazer sucesso nacional… Eu mencionei a viagem e ela se lembrou. “Como me esqueceria?”, perguntou rindo… Foi ali que eu tomava meu primeiro fora. Ela fechou um dos olhos e comentou, matreira,  que era paranoia minha. Que ela tinha dito "sim", eu ouvi "não" e que o som estava muito alto no meu walkman. E ainda tinha vômito no canto da minha boca…Ela era a minha “Risoflora”…

Já chegando em frente ao cinema, depois de tudo que ela me contou, eu tomei coragem e perguntei: Por que então voltou? Foi a saudade do Maracatu? Do Recife Antigo? De dançar Ciranda em Itamaracá? Meu coração pulsava e dizia “pergunta se foram saudades suas, vai…pergunta!” Ela só sorria e fazia que não com a cabeça; Eu seguia: Das praias? Do verão? Da Família? E o coração gritando: “Pergunta se eram saudades suas, seu imbecil!” Ela suspirou. O coração parou por um segundo e ela disse: “Se eu contar você não vai acreditar… Eu voltei por causa do sol de inverno maravilhoso desse nosso Recife….” "Sol de Inverno??? Sol de Inverno????", queria gritar. O coração começou a bater descompassado. Girou mais que a minha cabeça naquela volta da Pedra do Ingá. Coloquei os fones no ouvido. Já havia preparado para esse momento. Tocava, no último volume: “Oh Risoflora não me deixe só…” Entramos no cinema. A música alta nos ouvidos não me deixava pensar. Eu mal lia os seus lábios: “Tire o fone, tire o fone”….Minhas mãos pousaram levemente no seu pescoço. Ela ria… até sentir o aperto. Vi seus olhinhos verdes se enrubescerem. Quando ouvi o estalo da sua cervical, percebi que tinha acabado a bateria do Ipod.  Ainda ecoava no meu ouvido “Oh Risoflora…não me deixe só”. Saí do cinema. Eram 5 da tarde e o “sol de inverno” começava a se pôr….