Com tudo já na bolsa, lhe faltava o coração. O trem apitava. Pronto para sair. E ele não podia ir sem aquele que lhe enche o lado esquerdo do peito. Corria pela estação. Nada de encontrar seu órgão favorito. Bem que a vó dizia: Não podemos ir a canto algum sem o nosso coração. Ele, preparado para uma longa viagem em direção à capital, pensava nas palavras da avó. Viva, mas há muito enterrada. Não havia mais tempo. Tinha que embarcar. Fechou o peito, pregou o esterno e subiu no vagão. A viagem tinha de continuar.
"Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue, quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta pro desfecho da festa
Por favor
Deixa em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água..."
Ouvia Chico no vagão-restaurante e começava a perceber que não tinha tanta saudade assim daquele músculo ingrato que insistia em bater descompassado. Não poderia era ter perdido o fígado. Esse sim ficou feliz de ter recuperado. Pediu um gim-tônica duplo e foi olhar a paisagem. Quase não notava mais ninguém ao seu lado. Viu, pela janela, a pobreza daquele canto esquecido do Estado. Crianças corriam junto ao trem, tentando vender balas para comprar cola para cheirar. Não se importou. Pediu mais um drinque. Ficou feliz de ter intacta também a língua e todas suas papilas gustativas... Mas sabia que se continuasse naquele ritmo, em breve, sentiria um certo arrependimento de não ter deixado o estômago pra trás....
Sentou-se ao lado de uma família. Ouvia suas histórias. Que drama! Iriam visitar um parente em estado terminal. Um câncer já espalhado. E comentavam que a tia contava os gritos de dor do marido. Aquele tio que sempre cuidou, ajudou na escola, pagou os estudos, ensinou a torcer pro time certo. E choravam. Ah, como choravam. Levantou-se, cansado de ouvir as fungadas, e foi buscar outro drinque. Já tinha bebido bastante água, sentiu-se feliz por ter voltado para buscar o rim. E foi para outro vagão.
Dessa vez, pediu licença e se posicionou em frente de uma senhora com seu cachorro. Já bem idosa, o cão já bem velhinho. Achou que ali teria paz. A senhora, claro, puxou conversa. Mas falava mais com aquele animalzinho sarnento. Disse que seria a última viagem deles. Que seus tempos haviam acabado. E que o "Bolinha" ia ser sacrificado. Mas que, lá no interior, de onde vinha o trem, não poderiam acabar com o sofrimento do "Bolinha" de forma digna. Ele, já cansado de tanta história, esperou o primeiro túnel. Arremessou o cachorro pela janela. Levantou-se sorrindo e ouvindo os gritos desesperados da senhora. Aliviado e sem sentir aperto algum no peito.
Voltou para o vagão do bar. E lá ficou até o fim da viagem. Finalmente! Pegou seu título e foi direto para a seção eleitoral. Enfrentou meia hora de fila. Indiferente aos apelos (sempre há uma boca de urna), votou no candidato que representava o Governo do Estado. Sentia-se anestesiado. Voltou à Estação para pegar o trem de volta para o interior, quase sem entender nada, com a cabeça muito mais leve que o normal. E, com muito esforço, percebeu que antes de apertar o botão "confirma", tinha também perdido uma boa parte do cérebro. Agora, além do coração, tinha perdido quase toda sua massa cinzenta. Usou ainda os poucos neurônios que sobraram, tentou ligar para o Palácio do Governo, queria saber como se filiar ao partido do Governador...Deu ocupado. Começou a discar de novo 0...11... 2193...8282...
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